O homem é um animal racional passional
É inegável que nossas habilidades cognitivas sejam de fato únicas dentre os animais, mas isso não significa que a racionalidade nos seja dominante. Na verdade, ela nos é uma faculdade, não um imperativo; uma possibilidade, não uma inerência. Logo, se fosse possível de falar de uma ‘natureza humana’, jamais se poderia dizer que a razão faz parte de seu âmago.
O que parece estar no centro é justamente tudo aquilo que há de menos racional, consequente, lógico e ponderado. Como mais explicar, por exemplo, se não pela falta de uso da razão, a Inquisição? O nazismo? A Guerra do Iraque? Ora: a Igreja Católica desejava eliminar aqueles que pensavam de maneira diferente e, para isso, perseguiu e aniquilou; Hitler desejava a hegemonia ariana e, para isso, criou uma máquina de matar; os EUA desejavam controle do petróleo no Oriente Médio e, para isso, foram à guerra. Ou seja: a razão humana existe tão somente para determinar os meios que levarão ao fim impetuoso.
A razão e as crises contemporâneas
Pensemos na Europa como exemplo. Um continente que viveu guerras devastadoras até sua história recente, que conheceu os horrores da escassez, do medo, da morte e da impotência, poderia-se imaginar que, sabendo pelo que têm passado nos últimos 4 anos a população síria, iriam esforçar-se em acolhê-los da melhor forma.
Caso fossemos guiados com tanta força pela razão, identificando seu passado na situação do outro, o raciocínio europeu se daria no sentido de acolher os refugiados. Algo como: “Reconheço o horror do outro, pois já o vivi. Por isso compreendo sua situação e, de acordo com meus recursos, buscarei ajudá-los da melhor maneira possível”.
Mas as coisas não se deram bem assim: o Primeiro Ministro da Hungria construiu muros nas fronteiras do país; um dos motivos decisivos pela decisão do Brexit foi a questão imigratória; a ‘islamofobia’ é uma realidade em acensão.
Em momentos de crise, essa visão irracional de mundo se aflora da mesma forma com que despontam as cores na primavera: aos poucos e aos montes.
Vivemos uma crise interna, mas também estamos inseridos em um mundo agitadíssimo. Em momentos como esses, fazer ressurgir a razão, mais do que necessário, é quase uma condição de existência. Sem ela, não é possível pensar em direitos humanos universais, em estratégias coletivas para recuperação econômica ou linhas-guia para a condução de questões nacionais.
E por que dizemos isso?
Porque é verdade que o Brasil acabou de viver um processo de Impeachment bastante questionável;
Que Jucá afirmou que uma mudança de governo era necessária para frear as investigações do Ministério Público e da Polícia Federal;
Que a Operação Lava Jato desvendou provavelmente o maior esquema de corrupção já descoberto;
Que o programa do novo governo é perigosamente retrógrado;
Que a inflação já estourou seu teto há tempos;
Que no trimestre terminado em abril a taxa de desemprego era de 11,1%;
Que o Legislativo tem uma composição digna de show de horrores;
Que vivemos tempos difíceis, confusos e turbulentos.
Mas também é verdade que não temos Donald Trump quase vencendo as eleições presidenciais;
Que não forçamos mulheres retirarem suas burcas na praia;
Que não multamos aqueles que auxiliam refugiados;
Que não temos Marine Le Pen perto do poder;
Que não contamos com partidos neonazistas e neofascistas em acentuada acensão;
Que nossos profissionais da mídia não agridem fisicamente pessoas em situação de vulnerabilidade;
Que, apesar das dificuldades, não houve uma tentativa de golpe militar.
Veja: situação brasileira é inegavelmente grave, mas não somos os únicos a afogar.
E, outra vez, por que dizemos isso?
Porque é preciso olhar os fatos e analisá-los com ponderação de modo a afastar o espírito fatalista. Oposto à razão, só nos leva a cavar mais fundo o buraco onde – se seguirmos este ritmo – futuramente haveremos de cair.
Se olhamos para o resto do mundo, somos capazes de redimensionar a magnitude de nossos problemas. Ora, investigar e condenar pessoas de tanto peso em esquemas tamanha magnitude só tem condições de acontecer em um ambiente com certa solidez institucional: a Operação Lava Jato, apesar de todos os seus pesares, só ocorreu, porque o Brasil contou com uma maturidade importante.
Apesar das excrescências humanas que pediram a volta do regime militar, essa possibilidade sequer se concretizou como ideia.
Além disso, enquanto o agora presidente Michel Temer conta com apenas 13% de aprovação de seu governo, o magnata reacionário Donald Trump tem surreais 39% das intenções de voto, disputando com condições reais a presidência dos EUA.
Assim, que não nos esqueçamos: nossa crise é real, mas precisamos da razão para aproveitar que ainda não chegamos ao fundo do poço para que possamos ascender antes que isso ocorra.
“O Brasil ridicularizado pelo Reino Unido onde o voto do Brexit venceu? Pelos Estados Unidos que tem um Donald Trump com chances de vencer a presidência? Por uma França às voltas com terroristas produzidos por suas periferias? Por uma Europa que envergonha a si mesma ao (des)tratar os refugiados? São estas as matrizes que sabem o que fazem?” – Eliane Brum em “O Brasil chega à Olimpíada sem cara”
2 thoughts on “Trump não é brasileiro”